19 de jan. de 2009

Egoísmo epifânico







Ele não sabia como tudo aquilo estava acontecendo, mas ele sabia que ele estava vivo, bem ali.
Era um dia normal, nublado. Acordei com uma sensação estranha. Creio que essa era o fruto de ter cultivado durante toda uma noite uma única ação. Eu a pediria em casamento. Já estava tudo preparado, eu já havia pensado e repensado na situação, no clima, no momento, nas palavras, tudo estava pronto. Não consegui evitar tal fluxo de pensamentos ansiosos logo ao reconhecer a aurora.



Durante todo o decorrer do dia tudo parecia estar perfeitamente em seu lugar, nada fugira à rotina. E a noite se aproximava. Meus sentimentos festejavam, se esbarravam, se misturavam e num advento astuto impeliam me ao inevitável.
A noite chegou. Tomei o banho mais detalhado da minha vida, usei um perfume caro. Preocupei me com meus cabelos. Até o momento de sair de casa segui um verdadeiro ritual à estética. Quando já trêmulo e ansioso por vê-la, ela chega. Estava eu sentado num banco de praça sob aquele luar magnífico. As estrelas me cobriam como uma manta materna que tenta a todo custo proteger um filho. Sentia-me bem, no entanto, o medo me rondava. Quando ela sentou se e finalmente olhou em meus olhos, tive a certeza que naquele breve instante minha existência não teria sido vã. Quantas tempestades passaram para eu chegar naquela iminência de primavera. Guardei meu cordial pedido, tão desejado e preparado para a sobremesa da noite.





Contemplamos e celebramos a vida naquela noite, sorrimos, nos emocionamos como nunca. Naquela noite eu estava entregue, entregue a minha paixão, entregue a ela, entregue ao destino. Naquela noite não havia medo, não havia preocupação, o que ali se encerrava era um mútuo desejo, talvez mais que um desejo, mais que uma paixão, algo que as palavras se intimidam frente a tentativa de expressão. Enfim, não a definição que importava, não era a ciência do existir que valia a pena, nem nada. Tudo se resumia ao sentimento mais transcendente de um simples olhar. Era doce seu perfume, era suave sua pele, eram macios os seus lábios e delicadas suas palavras não ditas.
Brincamos como crianças, uma euforia e uma alegria passional nos fez correr entre os jardins e praças, fez-nos pular cercas, roubar flores numa aventura desajeitadamente infantil. Rolar na grama e, cansados, bastava-nos olhar ao lado e ali encontraríamos o nosso conforto, nosso descanso e nossa segurança em olhos igualmente cansados. Um abraço uniria as partes desse duo.
Foi uma noite de concerto àquilo que o tempo leva. Lembro-me de confiar-lhe alguns segredos e sonhos, entre eles, minha audácia de prever, com a ciência, a maneira como as pessoas se comportariam diante das situações. Ela apenas me escutava, era como se tivesse o medo equívoco de que suas palavras corromperiam o ar que nos unia. Seus olhos passeavam por meu rosto, eu sentia sua mão deslizar suavemente pelos riscos de minha expressão... Eu confesso tê-la sentida mais sensível, mais entregue, mas julguei, arrogantemente, que era nosso passeio...Talvez o fosse...



Como tudo, a noite estava se acabando, singelas gotas de chuva anunciavam o advento da aurora. Caminhamos sem pressa de mãos dadas. Praticamente dançando a passos lentos. Eu via apreensão em seus olhos, mas sentia uma paixão estranha em seus toques... quanto finalmente no momento de nossa despedida, uma dor indelével levou minha paz, uma angústia me deu uma força aflita em abraça-la nossos olhos denunciaram o mutualismo de nossas sensações com uma umidade dilacerante.




Olhei-a como nunca o fizera antes, acariciei-a e beijei-a de forma como jamais o faria novamente. Ela retribuíra a cada mínimo gesto com uma generosidade terminal. Ambos não entendiam os porquês daqueles momentos, repentinamente tomados por um torpe surto de realidade nos comportamos como crianças que revelam estar fazendo um teatro de um sonho. Mas não era o teatro de um sonho a falácia de nossas atitudes, mas a lucidez forjada de uma realidade criada e compreensível. Enfim, ela me olhou, largou vagarosamente minhas mãos e se virou caminhando através da rua, em direção a seu destino.






Fiquei olhando-a imobilizado, vendo me correr em sua direção com o anel, o pedido, um sonho... Confusamente me perguntara porque ainda me encontrava estático?! O que houve? A chuva que se fortalecia aos poucos suavizou a cena que vi, me fazendo fechar os olhos de medo. Tornei-me rapidamente a mesma criança que a pouco brincava na grama, mas desta vez mais frágil, mais triste, desesperada, incrédula e suspeitamente só, pois um carro acabara de levar de meus olhos o meu eu exteriorizado. Após o carro atropela-la ela caiu no chão, ameaçou levantar a cabeça, mas o máximo que conseguiu foi vira-la em minha direção e esticar o braço esquerdo... Era como se pedisse, ou melhor, como se quisesse ainda cuidar de mim, me tranqüilizar, me amar... A chuva levava embora o sangue que coloria o asfalto sujo pelas minhas lágrimas egoístas. Ajoelhado ao lado de seu corpo tentando sustenta-lo nos meus braços desprotegidos, fracos, eu olhava-a sustentando uma esperança incomum de um ultimo suspiro... E um anel dourado rolou no chão escuro, rolou titubeante, desacreditado. Seu brilho refletira meu desespero ser tingido em vermelho, ensopado em ódio à minha letargia contra o tempo, contra o passado recente... Delicadamente minha audácia desmedida se evaporou na chuva, agora não precisava mais sonhar, não precisava mais tencionar prever comportamentos, tencionar controlar o futuro, entender o ser humano... Este estava ali mesmo frente ao fenômeno da vida, seu fim... O mundo deixou de existir nesses instantes e tudo se resumia a nada, pois isso era agora a única coisa que tentava ocupar o lugar do desespero deprimente do inevitável... Chorei... Num susto ela se mexe e, com dificuldade me pede um abraço! Nesse momento abracei-a tentando penetrar-lhe o corpo, a alma, a natureza metafísica de seu ser e resgata-la de volta a qualquer custo! Inútil... Seu braço que envolvia meu pescoço se afrouxou, o calor da minha respiração sentiu-se só e meu coração latejou em revolta. Gritos, choro, desespero... Nada trouxe a de volta, mas no silencio da minha solidão, com ela ainda em meus braços, um surto epifânico me permitiu a certeza de ter sentido o amor que acabara de perder...






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